Paulo R. Prates
Porto Alegre, RS
Os dicionários definem símbolos como "tudo aquilo que, por um princípio de analogia, representa ou substitui alguma coisa. Aquilo que, por sua forma e natureza, evoca, representa ou substitui, num determinado contexto, algo abstrato ou ausente" 1. A balança é o símbolo da justiça; o sol é o símbolo da vida; a cruz é o símbolo do cristianismo. Todo o símbolo tem um significado, sem o que ele não pode representar alguma coisa.
O editor da respeitada revista The New England Journal of Medicine, Arnold S. Relman, em seu editorial comemorativo ao volume 300 da revista, refere-se ao seu símbolo, o bastão de Esculápio cruzado com uma pena, como the crossed quill and caduceus seal 2. Uma quantidade de cartas de médicos americanos e até mesmo de outros países chegou a redação para reclamar da confusão feita com o bastão de Esculápio e o caduceu de Mercúrio.
A confusão entre o bastão de Esculápio e o caduceu de Mercúrio é antiga e existe desde a Renascença 3. O bastão de Esculápio com uma serpente enrolada sempre foi o símbolo da atividade médica. Em 1919 a American Medical Association e em 1956 a World Medical Association o adotaram como seus símbolos 4. O caduceu é mais antigo que o bastão de Esculápio e sempre esteve relacionado ao comércio. De onde vem esta confusão entre os dois símbolos?
Mercúrio era filho de Júpiter e de Maia. Os gregos o chamavam de Hermes, que significa interprete ou mensageiro. Logo após seu nascimento revelou extraordinária inteligência. Conseguiu sair do berço e foi para Tessália onde roubou parte dos rebanhos guardados por Apolo e após esconder o gado numa caverna voltou para o berço como se nada tivesse acontecido. Quando Apolo descobriu o roubo conduziu Mercúrio diante de Júpiter que o obrigou a devolver os animais. No entanto, Apolo, encantado com o som da lira que Mercúrio tinha inventado, a partir de uma casco de tartaruga, deu-lhe em troca, o gado e o caduceu. Júpiter, surpreso com a vivacidade e inteligência do filho, fez dele seu mensageiro e o colocou a serviço de Plutão, deus das profundezas subterrâneas, os infernos, de onde reinava sobre os mortos. Uma das tarefas de Mercúrio era conduzir os mortos ao reino de Plutão 5,6. Esta é a origem do costume de que na antigüidade, os homens que procuravam os feridos e os mortos nos campos de batalha levassem o caduceu, semelhante à bandeira branca ou à bandeira da cruz vermelha nos conflitos mais recentes 7. Surgiu daí o fato de ser o caduceu o símbolo de serviços de saúde de algumas forças armadas, inclusive a dos Estados Unidos 3.
O caduceu era, originalmente, uma haste de ouro com asas em sua extremidade. Segundo a mitologia, Mercúrio lançou-o entre duas serpentes que lutavam e estas se entrelaçaram na haste em uma atitude amistosa 6. Daí o seu aspecto conhecido. Por ser Mercúrio, também, deus dos negociantes, o caduceu tornou-se o símbolo do comércio (fig. 1) 5,6.
A lenda, sobre Asklépios ou Esculápio, data de cerca de 700 anos AC, foi relatada por Hesíodo 8.
Esculápio, nome latino de Asklépios em grego, era filho de Apolo e Côronis. Nasceu em Epidauro no Peloponeso, de onde seu culto se disseminou. Conta a mitologia que Diana, irmã e uma das esposas de Apolo, numa crise de ciúmes matou a mortal Côronis, grávida de Apolo. Estando Côronis já na pira funerária, Apolo arrancou-lhe do ventre o filho Esculápio, entregando-o ao centauro Quiron para ensinar-lhe a arte de curar. O menino aprendeu depressa e logo ultrapassou o mestre. Tornou-se tão hábil na arte de curar que podia ressuscitar os mortos. Plutão, temeroso de que com esse dom, pudesse Esculápio diminuir as almas que chegavam ao seu reino, queixou-se a Júpiter que, como castigo, o eliminou com um raio. Em outra versão, Esculápio foi morto pelas flechas de seu próprio pai, tendo as flechas de Apolo tornado-se o símbolo da morte súbita na medicina grega 4-6,9. Numa de suas visitas a pacientes em seu templo, uma serpente enrolou-se em seu cajado. Apesar do esforço para retirá-la, a serpente tornava a enrolar-se no cajado onde permaneceu 4. Esculápio tornou-se o deus da medicina e seu cajado com uma serpente enrolada, o símbolo da atividade médica (fig. 2) 3,4,10.
De onde vem a confusão entre os símbolos de atividade tão diferentes?
A primeira causa é a serpente que desde o tempo dos babilônios esteve relacionada com a cura e, portanto, com a atividade médica. Na lenda do príncipe Gilgamés, transmitida pela escrita cuneiforme, a serpente, após comer a erva da vida despiu-se de sua pele envelhecida e se rejuvenesceu. Tornou-se o símbolo de vários deuses da cura nas culturas antigas 11.
A Bíblia, no Quarto Livro de Moisés, 21:8, também se refere à serpente, relacionando-a com a cura: "Então", disse o Senhor a Moisés: "faze uma serpente de bronze e põe-na sobre a haste; e será que todo o mordido que olhar para ela vivera".
Outro motivo é que o caduceu pertencia a Apolo que o deu a Mercúrio em troca da lira. Apolo é também considerado como deus da medicina pelos gregos e considerado o inventor da arte de curar 13. O juramento de Hipócrates inicia com o juramento em nome de Apolo, "juro por Apolo, médico, Asklépios, Hegéia e Panacéia..." 14.
O fato de ser usado nos campos de batalhas na procura de feridos e mortos também o confunde com a atividade médica 7.
Outro fato importante é a associação do caduceu à alquimia na idade média 3, daí a sua ligação aos medicamentos e a medicina.
Certamente, o motivo principal da confusão nos tempos atuais foi a publicação das obras de Hipócrates em grego pelo tipógrafo suíço Johannes Froben em 1538. O caduceu era o símbolo de sua tipografia e como tal, foi estampado na página frontal do livro (fig. 3) 15.
Símbolos significam a representação de alguma coisa ou de alguma atividade e podem, em determinado período, perder a sintonia com aquilo que ele representa. O famoso artista gráfico americano, Paul Rand, nos diz muito bem sobre isto:
"Há bons símbolos, como a cruz. Há outros como a suástica. Seus significados são tomados de uma realidade. Símbolos são uma dualidade. Eles tomam significado das causas... boas ou más". 16
As mudanças que a realidade econômica tem imposto à atividade médica com a comercialização exagerada da profissão; com planos de saúde impondo normas à nossa atividade e muitos desses planos usando corretamente o caduceu do comércio, como símbolo, mas algumas vezes fazendo com que este seja confundido com o símbolo da medicina, uma reflexão sobre o nosso verdadeiro símbolo e o seu significado se impõe. É pouco provável que seu uso incorreto possa induzir mudanças no comportamento médico. Em seu artigo "O símbolo da medicina: tradição e heresia" o Prof. Joffre Marcondes de Rezende escreve: "com a intermediação dos serviços médicos por empresas de fins lucrativos, a medicina tornou-se objeto de comércio por parte de terceiros. O médico passou a ser apenas um prestador de serviços e o paciente um consumidor, ambos sujeitos a normas contratuais previamente estabelecidas. Neste sentido, estaria justificado o uso por essas empresas do caduceu de Hermes, símbolo do comércio" 17. Por outro lado, não devemos esquecer que a nossa atividade surgiu com o homem, com o primeiro sinal de sofrimento e com o primeiro desejo de aliviá-lo 12 e outro não deveria ser seu objetivo primordial. Isto não tem nada em comum com o comércio. O bastão de Esculápio e o que ele significa é e deve continuar sendo o verdadeiro símbolo da medicina 4,9,18.
sexta-feira, 17 de outubro de 2008
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